PROJETO COMPARTILHAR

Coordenação: Bartyra Sette e Regina Moraes Junqueira

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Bartira e João Ramalho nas Cartas Jesuíticas

 

Cartas publicadas in : Leite, Serafim, Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, Ed 4º Centenário, Tipografia Atlântica, Coimbra, 1956

 

 

1)           Carta de Pero Correa ao P. Baltazar Nunes - 20-6-1551

“E umas dessas (índias doutrinadas) se achou a umas 10 légoas onde quiseram tratar mal nosso Padre e o ameaçaram com um pau, e o ameaçador foi um homem que a 40 anos está nesta terra e tem já bisnetos e sempre viveu em pecado mortal e anda excomungado e o Padre não quis fazer missa com ele e daqui veio depois da missa acabada a quere-lo maltratar porque ele é possante; mas a índia ali pregou muito rijo e com grande fé, oferecendo-se a padecer da companhia com o Padre se cumprisse. Eu não me achei ali mas contaram-mo dois Irmãos muito bons línguas que iam com o Padre: um deles chama Manuel de Chaves e o outro Fernando, moço de 15 até 18 anos...”

 

2)           Carta do Irmão Diogo Jacome - 1552

“Contra o Padre que com todo o amor o repreende e o exorta com todos os meios que pode e para isso busca e são que há tal que sobre ir daqui ha dez legoas sobre uma pessoa que haverá 20 ou 30 anos está em pecado mortal sobre todos os mimos com que primeiro o trouxe e vendo sua obstinação em estar excomungado pelo Vigário da terra quis o nosso Padre ir até lá dizer missa porque se passa de um ano e dois que não veem a Deus, podendo vir, nem o querem ver: e estando lá dizendo missa , entrou esse homem de maneira que lhe mandou o Padre que saísse que não podia celebrar com ele e saindo saíram também dois filhos seus da terra com ele de maneira que se determinaram para como acabasse a missa de lhe darem na cabeça, o que acabando a missa se saiu e veio para ele , o qual lhe rogou que não tivesse conta com ele , que era melhor cristão que ele e que fazia muito boas obras, mas não dizia se estava apartado do pecado , e assim lhe vieram os filhos com suas armas que são uns homens selvagens contra o nosso mesmo Padre  e ele assentado de joelhos diante deles, aparelhado para receber o que viesse...”

 

3) Carta de Nobrega em 31-8-1553, do sertão de São Vicente

João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais homens desta capitania e todos estes filhos são de uma índia, filha dos maiores e mais principais desta terra. De maneira que nele e nela e em seus filhos esperamos ter grande meio para a conversão dos gentios”...” Se o Núncio tiver poder hajam dele dispensa particular para esse mesmo João Ramalho poder casar não obstante tivesse conhecido outra irmã ou quaisquer outras parentes dela”.

in Serafim Leite, Novas Cartas Jesuíticas.”

 

4)           Carta de Anchieta de 1-6-1560, de Piratininga

“ Faleceu há pouco uma velha que havia sido manceba de um Português quase quarenta anos e ainda gerando muitos filhos: esta como nossos irmãos houvessem muito admoestado, que olhasse para si e não quisesse ir-se para o inferno por aquele pecado, logo arrependida e conhecendo a maldade com que havia vivido, aborreceu o pecado perseverando na castidade e trabalhava de purgar seus pecados pelas muitas esmolas que fazia. Agora ferida de uma longa enfermidade foi a Piratininga  onde deixou uma casa para seus filhos e escravos. Entendia somente as cousas tocante à salvação da alma, confessava e comungava muitas vezes, e dando-nos muitas esmolas, aparelhava eternos tabernáculos na vida. Visitavam-na muitas vezes os Irmãos, confortavam-na nas divinas palavras, principalmente quando já no ultimo, tendo corruptos os membros secretos (esta era sua enfermidade que é muito comum  nestas mulheres do Brasil, ainda que virgens) mas o Padre Afonso Braz e o Irmão Gaspar Lourenço intérprete, tendo mais animo ao odor que sua alma havia de dar, venceram o fedor que aos outros era intolerável, estiveram toda noite sem dormir, esforçando-a com divinas palavras, em que ela muito se deleitava, até que expirou com ditoso fim, como é de crer.”

Cartas Jesuíticas

 

5)           Apontamentos de Anchieta, in Anchieta-O Apóstolo do Brasil, de Pe Viotti, fls 155

“Também Deus deu muito bom fim àquela índia, que fora o tropeço desse homem. A qual ainda que dele tinha muitos filhos, logo nos primeiros avisos dos padres se apartou do pecado, sem mais tornar a ele, posto que governava toda a família, que era grande. Fazia contínuas esmolas aos nossos, freqüentemente se confessava. Chegando-se a sua hora, muitos dias antes mandou fazer uma casa junto à nossa em Piratininga para aí ser ajudada em seu espírito pelos nossos padres como foi até que cheia de boas obras, aí acabou seus dias.

 

6)           Carta de Anchieta ao Padre  Inácio de Loyola – São Paulo de Piratininga – 1-9- 1554

De facto, alguns cristãos filhos de pai português e mãe brasílica, que estão apartados de nós 9 milhas numa povoação de portugueses, não cessam nunca de esforçar-se juntamente com o pai por lançar a terra a obra que procuramos edificar com a ajuda de Deus pois exortam repetida e criminosamente os catecúmenos a apartarem-se de nós e a crerem neles, que usam arco e frechas como os índios, e a não fiarem em nós que fomos enviados aqui por causa de nossa maldade.  Com esses e semelhantes coisas conseguem que uns não creiam na pregação da palavra de Deus  e que outra que parecia já termos encerados no redil de Cristo voltem aos antigos costumes e se apartem de nós para viverem mais livremente. Os nossos irmãos tinham gasto quase um ano e meio a doutrinar uns, que distam de nós 90 milhas e eles, renunciando aos costumes gentílicos, tinham resolvido seguir os nossos e tinham-nos prometido nem matar nunca os inimigos nem comer carne humana. Agora porém, convencidos por estes cristãos e levados pelo exemplo de uma nefanda e abominável depravação, preparam-se não só para os matar mas também para comer.

Da guerra a que me referi acima, tendo um destes cristãos trazido um cativo, entregou-o a um irmão dele para o matar. E matou-o de fato com muita crueldade, tingindo as próprias pernas de vermelho e tomando o nome de quem matara em sinal de honra, como é costume entre os gentios; e, se o não comeu, deu-o ao menos a comer aos índios, exortando-os a que não deixassem perder a quem ele matara, mas o assassem e levassem para comer.

Outro irmão do mesmo, advertindo-se de que tivesse cuidado com a Santa Inquisição, por seguir costumes gentílicos, respondeu que vararia com flexas duas inquisições.

E são cristãos, nascidos de pai cristão, que sendo espinho não pode produzir rosas.

Este passou quase 50 anos nesta região, junto com uma concubina brasílica, e gerou muitos filhos: a salva-los dedicaram os irmãos de nossa Companhia todos os cuidados e canseiras....

Notando porém que nenhum fruto se obtinha dele, mas que ao contrário continuavam o maior escândalo, tanto o pai como os filhos, que estão unidos com duas irmãs e duas filhas do mesmo pai- começaram os Irmãos a exercer sobre eles algum rigor e violência, sobretudo separando-os da comunhão da Igreja.

Mas eles, que deveriam ter mudado com esta medida, estão a tal ponto depravados, que nos têm o maior ódio e procuram prejudicar-nos de todos os modos, ameaçando-nos até de morte e esforçando-se para inutilizar a doutrina em que educamos e instruímos os índios por concitar ódio deles contra nós.

E assim, se não se extinguir completamente esta peste tão perniciosa, não só não se poderá seguir na conversão dos infiéis mas terá de debilitar-se e diminuir cada vez mais.

 

7)           Ir. José de Anchieta ao Padre Inácio de Loyola – São Vicente – março de 1555

 

Os cristãos nascidos de pai português e mãe brasílica de que fiz menção no último quadrimestre, estão tão duros e cegos que crescem estão  cada vez mais o ódio duro que nos têm. Não o podendo exercer contra nós por obras, aplicam-no para a ruína dos índios de maneira que já destruíram completamente uma aldeia em que morava o Padre Francisco Pires e o Padre Vicente Rodrigues, incitando os índios a matar os contrários e a comer sua carne.

Mas ainda não basta aos agentes do demônio. Se pudessem até os próprios portugueses afastariam da fé cristã.

Costumando o Reverendo em Cristo P. Manoel da Nóbrega visitar uma povoação de Portugueses em que residem e levar-lhes o alimento espiritual, pode tanto a iniqüidade e malícia deles que estorvaram o Padre a continuação desta obra, privando os cristãos de alimento espiritual. Dominou-os tanta loucura e fúria que os próprios cristãos, pelo amor que tem ao Padre não deixaram que vala, porque sabem que ele está ameaçado de morte; e preferem antes privar-se deste benefício que pôr em risco a vida do Padre, que ele, todavia não duvida em sacrificar de boa mente por eles. E desta maneira pretendem impedir a que uns não tratem e outros que não se aproximem de Cristo.

Por que se conserva nesta terra esta peste, que contamina a todos com seu nefando contágio? Arranque-se para que não se apague de todo nos próprios cristãos o nome de Cristo.

Vamos sofrendo com paciência que  depois da tempestade vem a bonança. Especialmente agora que se encontrou grande abundância de oiro e prata, ferro e outros metais com que enchem as próprias casas onde moram; o que levará o Sereníssimo Rei de Portugal a mandar para aqui uma força armada e numerosos exércitos, que dêm cabo de todos os malvados que resistem à pregação de Evangelho e os sujeitem ao jugo da escravidão.

 

8)            Ir. José de Anchieta ao Padre Inácio de Loyola – São Vicente – março de 1555 (continuação)

Levando isso a mal o inimigo do gênero humano, procurou afasta-los da verdade com toda a espécie de meios, quando quase todos os índios se juntaram para aquela guerra geral de que falei no passado quadrimestre.

Ganharam com o auxilio do demônio tal e tão grande vitória dos contrários, que em todas as Aldeias se celebraram aquelas miseráveis cerimônias de morte dos contrários. De maneira que até na própria vila dos portugueses que é cabeça das outras foi morto um deles com a maior festa diante de toda a gente portuguesa. Estes portugueses bem longe de impedirem ou repreenderem, quase todos assistiram o espetáculo e aprovaram e louvaram, o que excitou muito nossos catecúmenos a partirem também para a guerra a fim de tomarem alguns contrários. E de fato acharam alguns, chamados Papanás, que habitam sempre nos matos e causam a todos aqui o maior terror, e tomaram dois; e julgando ação digna de homem valente quiseram prosseguir a guerra, mas voltaram primeiro à Aldeia para matarem um deles. Para isso, o próprio Principal de que falei muitas vezes, e no qual tínhamos alguma confiança, mandou recado para que tratassem com diligência de preparar as cordas, espadas e todas as coisas necessárias de que costumam servir-se em tal ato.

Intervieram os Irmãos.....

Sentiu ele muito com isto e pediu em grandes brados uma foice para matar o preso.....

Mas enfim, ora com rogos, ora à força, ora com palavras da sogra e da própria mulher, que eram a única ajuda dos irmãos, conseguiram meter em casa o Principal; e ainda que não lhe mudaram o ruim propósito, ao menos tiram-lhe o contrário das mãos. Ele, como não pode mata-lo nessa hora, pensa em o levar para outra vila, a seis milhas dali e mata-lo à  maneira gentílica , como se nunca tivesse sido cristão. 

 

9) Ir. José de Anchieta ao Padre Inácio de Loyola – São Vicente – março de 1555 (continuação)

Já tinha escrito isto, quando recebemos carta dos irmãos que estão em Piratininga e fomos informados do seguimento da questão. Um dia depois de se passar o que acima disse, falou um índio velho e já cristão, e não só repreendeu severamente a atitude do Principal , mas também louvou muito a nossa vida e nossos costumes cristãos, exortando os Índios a seguirem a nossa doutrina. Acabando ele de falar, ergueu-se a sogra do Principal, já muito idosa e há muito batizada, que se pôs do nosso lado, nos elogiou muito e censurou quanto pode o genro  dizendo que ele nenhuma consideração teria alcançado se nós não o elevássemos a tanta honra.

Este, pelo contrário, deitou fala diabólica em que renunciou à fé e ao batismo recebido, vituperou os costumes cristãos e louvou os seus aos quais está resolvido a voltar, deixando o nome que recebera no batismo e retomando o seu gentílico. E disse abertamente que havia de retornar a fazer guerras e matar contrários como costumava fazer antes, o que a mulher a sogra e os filhos detestam....

Depois disto recebemos outra carta dos mesmos irmãos dizendo que o Principal já está arrependido, pediu perdão aos Irmãos  e procura por todos os meios reconciliar-se com eles.